sexta-feira, 8 de abril de 2011

mais um livro +

primeiro capitulo: animais humilhados, humanos obscuros, objetos animados 


Eu fiz uma longa viagem para chegar até aqui. Não nasci em berço de ouro, para depois ser jogado na privada. Nem fui criado às margens desta poluída cidade. Tive uma infância e adolescência ordinárias, como a maioria da minha espécie, e talvez tenha até demorado um pouco para seguir meu próprio caminho, mas não demais. Afinal, os caminhos abertos a nós sempre foram abertos por outros, não são nossos, real ou exclusivamente. Assim, enquanto minha juventude ainda fluía intensa pelas correntezas, deixei que ela me levasse e eu seguisse o seu chamado. Poderia lamentar ter desaguado num esgoto, mas, como todos os jovens, sempre quis provar o gosto dos subterrâneos.

O gosto dos subterrâneos foi o que me tornou incapaz de sentir qualquer outra coisa. Vocês sabem, quando se está mergulhado em excessos, não se pode estimular papilas individualmente. É como tentar pedir para tirar cebolas de um hambúrguer de fast-food, ou reconhecer cada fruta que forma o sabor genérico de tutti-frutti. Todos esses tóxicos que saem pelos canos, toda essa comida industrializada tiveram um efeito ainda maior na minha cabeça do que no meu paladar — e hoje sinto que tenho várias faculdades mentais prejudicadas. Mas, provavelmente, muitas outras evoluídas. Afinal, se não houvesse passado pelo que eu passei, não haveria graça em contar a minha história. Não seria novidade nenhuma, mais um jacaré alimentando-se de capivaras. Com a boca aberta sob o sol. Palitando os dentes com passarinhos. Ah, seria uma aventura bucólica que eu nem teria capacidade de organizar em sentenças, pontuadas, se minhas funções mentais não tivessem sido alteradas. 

É o preço que a gente paga, não é? Para ficar na história, ficar numa história, contar uma história e ter do que se orgulhar. Orgulhar-se do que se conta, do que importa, da nossa história, mesmo que ela, enquanto acontecesse, não fosse tão doce, tão simples, tão bela. O tempo suaviza, esses produtos químicos amaciam a carne, a mente corroída se lembra de tudo mais belo, aventuras passadas, contadas com orgulho quando deixadas para trás. Ah, mas para passar por elas... 

É preciso perder alguns neurônios para que os neurônios sobreviventes se esforcem mais. Esquecer os nomes dos pais, para recitar os poetas franceses. Contanto que eu não perca minha censura, tudo o que eu me lembrar pode ser usado a meu favor.

Concordo que poderia ter sido diferente, eu poderia ter seguido outros caminhos e não ter me lesado tanto. Mas vai saber o que uma simples friagem não pode fazer em mentes demasiadamente protegidas, ou o efeito tóxico da noz-moscada na comidinha caseira, ou o lapso permanente — a paralisia cerebral — provocada ao se dizer Pecan Pie num quarto de hotel. Se a destruição é inevitável, ao menos que seja saborosa.

Não preciso que acreditem. O mérito não está na verossimilhança. O importante é que, por eu ter passado pelo que passei, posso descrever, pois não posso inventar. Não, esse talento eu ainda não tenho. O talento da criação/abstração, ocorre com sinapses que só se realizam com o sangue quente. Então, se tomam como absurdo, poesia, ficção, me orgulha ainda mais. Como eu disse, o importante é ordenar as sentenças, ter algo a contar, mesmo que não seja verdade. Mesmo que não tenha acontecido, pois só é interessante agora, não quando tudo começou. Ah, quando tudo começou eu tinha tanto mais a fazer do que contar...

Não passava uma noite parado, mesmo que a correnteza não fosse forte o suficiente. Nos esgotos, não fazia tanta diferença, a correnteza era água parada, talvez por isso mesmo eu precisasse me movimentar. Talvez por isso mesmo eu precisasse fazer um esforço, mudar de cenário, para não ficar contemplando as mesmas moscas, ratos e restos. Para sentir novos frescores de águas poluídas, dejetos, para fazer a história acontecer. Como os tubarões, eu precisava respirar — dizem que tubarões só respiram com a água passando pelas guelras, com as barbatanas se movimentando, fazendo a água passar, se param, afundam, se afundam, morrem, sem oxigênio circulando, precisam fazer a água circular. Eu não sou tubarão, longe disso, nem estou certo de que é assim mesmo que eles funcionam, não são meus colegas. Estou certo de que eles não pensam assim, não pensam de forma alguma, como a maioria dos seres sobre e sob a terra. Se me remeti a eles é porque eu posso, faço isso por mim e por eles, tubarões, que não têm meios de expressão nem faculdades mentais a serem prejudicadas, universidades a serem implodidas. Tubarões, que não podem parar para contemplar e descrever. Se se aprofundam... morrem... Mas foi apenas um exemplo, não devia me deter tanto tempo nisso...

É sobre a vida que quero falar! A vida nos meus ossos, no meu sangue, na minha carne. A carne na minha boca, no meu maxilar, a mastigar. Ah, não venham com essa de que nós — crocodilianos — não mastigamos. Se vocês tivessem dentes como os meus, e consciência sobre eles, não descansariam suas mandíbulas um minuto. Também não dizem que jacarés não podem escrever? Isso é tudo lenda, lenda, assim como a lenda dos jacarés nos subterrâneos... 

No fundo somos todos iguais. No fundo, somos todos animais. No fundo do mar, do esgoto, da terra. Todos a agir, apenas alguns a pensar. Os que pensam, pensam, pensam sobre suas próprias ações, as mesmas ações dos outros, não mudam em nada os atos em si. Talvez para que aqueles que não pensem possam se identificar. Os que não pensem possam ler e refletir, e continuar, para não afundar. Mas o que estou dizendo? Como se os tubarões fossem me ler... Ah-há, esse talento eles é que não têm. Eu sim. Agora eu tenho. Agora eu posso, que não me movimento tanto. Afundo, mergulho, posso me aprofundar. Remexer meus antigos pensamentos, o lixo, repensar no que ficou e no que ficará. No que eu quero deixar. Ah, esperem um pouco que já vou avançar.

Como foi que aprendi? Como foi que aprendi a ler, escrever, vocês me perguntam. Sem ninguém para ensinar. Não é necessário alguém para guiar seus instintos ao trabalho que eles nasceram para fazer. Se não há grandes explosões para nos distrair — ou pântanos para nos atolar — acabamos desenvolvendo o potencial ditado pelos genes, podem chamar isso de determinismo. Quando um livro cai em suas mãos. Quando papéis preenchidos passam pela sua frente. Quando frases se somam em cartazes e discursos, quando notamos as figuras e interpretamos os rabiscos. Foi assim, pouco a pouco, que comecei a entender que aquilo tudo fazia sentido... ou deveria fazer.

Talvez não faça, mas foi nesse sentido que me esforcei. Para entender. Tudo o que aquilo queria dizer, as informações que queria passar, e fui me encantando pelas possibilidades de leitura, primeiro pela exoticidade, o mistério das paixões humanas, depois por exercício, manter a mente funcionando, decodificando sinais, interpretando letras. Em pouco tempo, vivendo entre o lixo, qualquer um aprende a ler. 

Mas antes de tudo, deixe-me particularizar. Sim, esta é uma história particular. Não conheço outros jacarés como eu. Não sei de outros casos como o meu. Já ouvi essas lendas, urbanas, sim, como vocês devem ter ouvido. Está no inconsciente coletivo, jacarés na fossa da sua cabeça, mas nunca encontrei nenhum outro por lá. Não digo que sou o único, talvez não. As galerias subterrâneas são imensas, teria espaço para muitos outros. Só que não acredito que esse lugar atraia muitos da minha espécie, não é um habitat saudável. Há muitos ratos, insetos, doenças. Falta calor, radiação UVA/UVB, tudo isso de que os herps precisam. Digo que foi um fenômeno eu ter chegado até aqui. E é sobre fenômenos que quero contar. 


(Mastigando humanos/ Santiago Nazarian)

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